A geração superficial do
facebook, tão acostumada a tomar trechos de textos por obras completas,
certamente se surpreenderia ao se deparar com o cenário sóbrio e denso de Dama da Noite – adaptação do conto de
mesmo nome do livro “Os Dragões não Conhecem o Paraíso”, de Caio Fernando
Abreu.
O espetáculo é um convite
para um mergulho nos pensamentos de uma drag queen que perambula pelos bares em
busca do verdadeiro amor. O único cenário é composto de um banco, uma mesinha,
um cinzeiro e quatro latas de cerveja – a representação de uma mesa de bar, um
boteco, um pub ou qualquer outro nome que você quiser chamar ou conseguir imaginar.
O ator Luiz Fernando Almeida
encarna as dores e os angústia de um alguém que não se sente parte integrante
do sistema – aqui representado na analogia da roda, representação ideológica dos altos e baixos que traduzem o mundo capitalista.
Por meio de críticas e
provocações com a plateia, a dama da noite discorre sobre assuntos complexos como
paixão, solidão, sexo, AIDS, medos e até mesmo a própria morte. Todos os temas
passeiam pela metáfora da roda, ilustrando todos os aspectos sociais de um
mundo do qual o personagem se vê excluído.
O diálogo se estende por
todos os espectadores, mas na maior parte das vezes se fixa em um único –
denominado como “boy” – com quem a dama da noite conversa longamente sobre
aparências e as regras impostas pela sociedade que permitem o “rodar”.
Destaque para a atuação de
Almeida, que conduz com inteligência a plateia a refletir sobre o íntimo do
personagem. As dúvidas e medos que traz dentro de si, ficam evidentes em
passagens onde se refere a si mesmo como masculino e feminino, ou quando
alterna realidade e ficção, mergulhando no conto de Caio Fernando Abreu e
submergindo dele com suas próprias indagações e traumas.
“Olha bem pra mim - tenho cara de quem escolheu alguma coisa na vida?” –
a frase ecoada pelas paredes da Frontaria Azulejada, nitidamente rompeu a
barreira da mera interpretação.
Apresentação na casa da Frontaria Azulejada, dia 17.01 |
A iluminação e a trilha
sonora de Dama da Noite, ambas planejadas
pelo diretor André Leahum, é um espetáculo que se desenrolada em paralelo à
trama principal. A música permite com que o espectador se angustie com o que
está sendo pensado no palco improvisado, do qual também faz parte.
O jogo de luz e sombras que
se reproduzem no fundo da cena dá ainda mais dimensão para a reflexão que está
sendo exposta pelo ator.
No fim, dama da noite busca
apenas um amor, característica que a aproxima e ao mesmo tempo a afasta do
centro da roda. Após a noite, onde se apresenta com segurança e cheia de si, ao
adentrar em sua casa, se vê como uma criança assustada.
O final do conto e a cena
derradeira da apresentação nos mostra o quanto a dualidade de instintos e
sensações faz com a personagem tenha tudo e ao mesmo tempo nada do que é
necessário para fazer parte da roda.
Seus encontros e
desencontros contribuem para que o rodar permaneça - como algo contínuo.
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