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domingo, 19 de janeiro de 2014

O rodar da roda e a dama da noite

A geração superficial do facebook, tão acostumada a tomar trechos de textos por obras completas, certamente se surpreenderia ao se deparar com o cenário sóbrio e denso de Dama da Noite – adaptação do conto de mesmo nome do livro “Os Dragões não Conhecem o Paraíso”, de Caio Fernando Abreu.



O espetáculo é um convite para um mergulho nos pensamentos de uma drag queen que perambula pelos bares em busca do verdadeiro amor. O único cenário é composto de um banco, uma mesinha, um cinzeiro e quatro latas de cerveja – a representação de uma mesa de bar, um boteco, um pub ou qualquer outro nome que você quiser chamar ou conseguir imaginar.

O ator Luiz Fernando Almeida encarna as dores e os angústia de um alguém que não se sente parte integrante do sistema – aqui representado na analogia da roda, representação ideológica dos altos e baixos que traduzem o mundo capitalista.

Por meio de críticas e provocações com a plateia, a dama da noite discorre sobre assuntos complexos como paixão, solidão, sexo, AIDS, medos e até mesmo a própria morte. Todos os temas passeiam pela metáfora da roda, ilustrando todos os aspectos sociais de um mundo do qual o personagem se vê excluído.

O diálogo se estende por todos os espectadores, mas na maior parte das vezes se fixa em um único – denominado como “boy” – com quem a dama da noite conversa longamente sobre aparências e as regras impostas pela sociedade que permitem o “rodar”.

Destaque para a atuação de Almeida, que conduz com inteligência a plateia a refletir sobre o íntimo do personagem. As dúvidas e medos que traz dentro de si, ficam evidentes em passagens onde se refere a si mesmo como masculino e feminino, ou quando alterna realidade e ficção, mergulhando no conto de Caio Fernando Abreu e submergindo dele com suas próprias indagações e traumas.

Olha bem pra mim - tenho cara de quem escolheu alguma coisa na vida?” – a frase ecoada pelas paredes da Frontaria Azulejada, nitidamente rompeu a barreira da mera interpretação.

Apresentação na casa da Frontaria Azulejada, dia 17.01
A iluminação e a trilha sonora de Dama da Noite, ambas planejadas pelo diretor André Leahum, é um espetáculo que se desenrolada em paralelo à trama principal. A música permite com que o espectador se angustie com o que está sendo pensado no palco improvisado, do qual também faz parte.

O jogo de luz e sombras que se reproduzem no fundo da cena dá ainda mais dimensão para a reflexão que está sendo exposta pelo ator.

No fim, dama da noite busca apenas um amor, característica que a aproxima e ao mesmo tempo a afasta do centro da roda. Após a noite, onde se apresenta com segurança e cheia de si, ao adentrar em sua casa, se vê como uma criança assustada.

O final do conto e a cena derradeira da apresentação nos mostra o quanto a dualidade de instintos e sensações faz com a personagem tenha tudo e ao mesmo tempo nada do que é necessário para fazer parte da roda.


Seus encontros e desencontros contribuem para que o rodar permaneça - como algo contínuo.

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